Trata-se de um testemunho de violência explícita em plena luz do dia contra crianças em região nobre de São Paulo. Essa cidade cada dia mais sedenta por brutalidade, desrespeito, desigualdade e vingança sob o mentiroso manto da segurança/justiça.
O testemunho também deixa clara a influência midiática (PIG) na mente daqueles que vivem no mundo simplista do senso comum. E ainda há quem não defenda a criação de uma Lei de Mídia neste país.
A barbárie do sistema está legitimada e com ela não há como conviver sem preconceitos e discriminação. Cenário que empurrará inexoravelmente crianças para a exclusão, a falta de dignidade e consequentemente à revolta e violência. A partir deste momento, os mesmos flagrados agredindo crianças covardemente, surgirão clamando por justiça e defendendo a redução da maioridade penal.
A hipocrisia aponta crianças como criminosas e a sociedade individualista e senil a ratifica.
Confira:
Às três da tarde na Teodoro Sampaio
São
três da tarde, esquina da Pedroso de Morais com a Teodoro Sampaio,
próximo ao Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo, um dos pontos mais
movimentados da capital paulista. Dois homens em plena esquina agridem
três crianças. Crianças pobres: uma negra, uma mulata e a última, uma
branca que não era loira.
Ao ver de dentro do ônibus a cena pude
ver a criança negra sendo agarrada por detrás do pescoço e sendo lançada
no meio da rua. Foi o suficiente para sair em disparada do ônibus e ir
em direção a eles. Ao chegar, o segundo homem estava levando a criança
branca, mas não loira, pela orelha até à calçada do outro lado da rua.
Nesse momento tive a desgraçada sorte de vê-lo, ao largar a criança na
calçada, dizer com o dedo apontado em seu rosto:
Disparei em meio àquela cena que os dois
homens adultos se afastassem das três crianças imediatamente. A
discussão estava instalada. Naquele exato momento tive a plena
consciência de que um linchamento público não seria um destino distante
das três.
– Não são e nem precisariam ser, são crianças e isso basta.
– São ladrões, são bandidos, fazem isso sempre.
– Não é sua função dizer o que eles fazem ou não. Inclusive o crime é seu. Você não pode agredir essas crianças, eu mesma vi.
Nisso, dois polícias que estavam do outro lado da rua vieram em direção à confusão que eu sozinha havia instalado.
– Esses dois homens estavam agredindo
essas crianças, senhor policial, eu posso ser testemunha. O primeiro
senhor agarrou a criança pelo pescoço e o segundo arrastou a outra
criança pela orelha, a xingando de bosta.
– Mas você não vê que eles são bandidos?
– Não, não vejo, senhor. Vejo três crianças serem agredidas no meio da rua por vocês.
O primeiro policial se aproximou, pôs suas mãos no cinto e disparou:
– Eu resolvo isso já, vou levar esses três moleques para a FEBEM e a gente resolve isso já.
Imediatamente disparei:
– É assim que se dirige a uma criança, senhor policial?
– É assim que o senhor se dirige a uma
criança senhor policial? Se ele fosse branquinho dos olhos azuis o
senhor falaria assim com ele, senhor policial?
– A senhora gostaria de ir à delegacia abrir uma representação?
O adulto que disse a uma das crianças que ele era um bosta me perguntou:
– Não coloque apresentadores da tevê no
meio disso aqui. Vocês acreditam que pegando uma criança no pescoço no
meio da rua, xingando ela de bosta, vocês vão incentivar o quê?! Essas
crianças vão ficar malucas e por muito menos vocês estão cultivando o
que assistem na televisão. Eles têm direitos sonegados. Eles têm direito
a lazer, cultura e educação, e é tudo o que os três não têm.
As poucas pessoas que paravam soltavam comentários a favor de um linchamento público das três.
– São bandidos, já assassinaram alguém! Isso ai é tudo bandido, tudo assassino!
O homem que havia segurado o pescoço do
menino se aproximou de mim e disse que ele estava errado e que me pedia
desculpas. Respondi que ele não devia desculpas a mim, mas à criança a
quem ele havia dado a enforcadura no pescoço. Ele então sumiu.
O segundo policial, muito mais flexível, abordou a questão da seguinte forma:
– O papel da Polícia Militar é mediar conflitos. São situações onde é difícil se chegar a um consenso.
– Senhor policial, mas não se trata de chegarmos a um consenso, não? Eles não podem agredir as crianças. É a lei.
O policial dirigiu-se a mim e às
crianças, que a esta altura já estavam todas atrás de mim como pintos
atrás de uma galinha. Disse o que eles poderiam e não poderiam fazer, e
que eu estava dispensada – após anotar somente o meu RG. Questionei
então se o senhor policial não iria falar o que aqueles dois homens não
poderiam fazer.
– Sim, sim. O senhor, quando tiver algum problema, retém a criança no local e liga no 190.
– A senhora pode ir embora, vocês podem ir embora.
E um instante de silêncio se fez em mim.
Eu não ia embora. Eu poderia ter dito e feito muitas outras coisas, mas
estas foram as que consegui sem ter sido presa por desacato. No final
eu tinha três crianças olhando para mim imóveis. Eu tinha três crianças
ali.
Detalhe:
nenhum dos dois homens negou o que havia feito em momento algum; para
meu espanto tentaram justificá-lo de uma forma bastante específica.
Nossa televisão está regando o fascismo que transborda dos corações
paulistanos. O que era uma simples ideia, agora é plena realidade. Eram
três horas da tarde em plena Teodoro Sampaio, o que será das três da
tarde no Jardim Paulistano ou no Campo Limpo? Eram três crianças que não
passavam da altura do meu diafragma. Eram três indivíduos em plena
formação, que foram humilhados em praça pública por pessoas que
entenderam-se no direito. Adultos alimentados e pavimentados por um
discurso massivo vomitado hora a hora pela nossa televisão.
A não implementação das garantias
constitucionais dos direitos das crianças e dos adolescentes está dando
seus frutos mais amargos. Até quando nosso Ministério Público irá
esperar para que ele, sim, entre com uma representação contra o discurso
de ódio midiatizado? Quando crianças como essas forem assassinadas
preventivamente? Afinal, são todas assassinas como mostram na tevê,
memória que não me deixou escapar um transeunte que se dignou a parar e a
verborragir à minha frente. Se são todos assassinos, na dúvida eles não
merecem outra coisa que um tratamento preventivo.
O que eu assisti abalou a mim, mas e às
três? Por muito menos eu me tornaria um adulto revoltado. Alguém aqui
sabe o que significa ser chamado de bosta ou ser segurado pelo pescoço
como um animal em meio à Av. Teodoro Sampaio às três da tarde numa
quinta-feira? Alguém?
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Parabéns ao autor deste texto. Teve dignidade e atitude louvável ao defender as crianças, e a perspicácia de notar que setores da mídia faz campanha fascista e impregnada de ódio de classe, na qual o bandido é sempre o pobre.
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