sexta-feira, 6 de maio de 2011

A REVISÃO DA LEI QUE NÃO PEGOU




Da Carta Capital

A situação é constrangedora, mas acontece todos os dias: o professor precisa que seus alunos tenham em mãos um trecho de livro para a próxima aula. No momento em que ele disponibiliza o texto no departamento de fotocópias da escola e pede aos estudantes que tirem uma “xerox”, este professor, os alunos e o dono da lojinha da fotocopiadora passam imediatamente a ter o status de foras da lei. O motivo: a Lei nº 9.610, implementada em 1998, que tem como objetivo proteger os direitos de autor, proíbe a reprodução total e, de maneira bastante confusa, parcial de livros e músicas.

Os problemas que a escola enfrenta por conta da chamada Lei dos Direitos Autorais são parte de uma questão complexa que envolve o mundo da produção cultural (artistas, gravadoras de música, produtoras de audiovisual, editoras), a academia (professores, estudantes e pesquisadores), comercial (donos de fotocopiadoras) e social (qualquer pessoa que baixe músicas na internet). Em outras palavras: há muitos personagens envolvidos com interesses específicos e opostos.

Conhecendo os problemas crônicos que não agradam nem a gregos nem a troianos, o Ministério da Cultura colocou em discussão pública novas diretrizes para uma reformulação da lei. O MinC recebeu propostas de diversos setores da sociedade até agosto de 2010 e as encaminhou para discussão no Congresso. A Comissão de Educação e Cultura deverá debater o tema, agregar novas propostas, fechar um projeto final e colocá-lo para votação, o que pode ocorrer até o fim do ano. Mas é quase impossível satisfazer todas as partes.

“A internet obriga essas áreas a rever o modelo de negócios”, diz Sérgio Branco, professor da FGV especializado em propriedade intelectual. “A lei até aqui não fez distinção entre indústria, usuário e professor, e cada um desses grupos tem uma relação -particular com cópias. A relação capitalista da indústria não move os usuários, e a academia fica numa zona intermediária”, afirma Branco.

Pela proposta do ministério, detalhada por Rafael Oliveira, coordenador-geral de difusão de direitos autorais e acesso à cultura do Ministério da Cultura, o objetivo da reforma é equilibrar a relação entre investidores e criadores, deixar clara a figura da licença autoral e quando ela se aplica e garantir direitos das pessoas ao acesso ao conhecimento. O uso transformativo de obras – ou seja, remixes audiovisuais ou mudanças de texto – poderá ser legalizado. “O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda não instituíram a cópia privada”, disse, durante a apresentação do projeto de lei em São Paulo.

A questão da cópia é justamente o grande abacaxi a ser descascado no que tange ao setor educacional. As editoras não abrem mão da proibição. A Associação Brasileira de Editores de Livros Escolares (Abrelivros), que representa os interesses das grandes empresas do setor, respondeu à reportagem por e-mail assinado pelo presidente Jorge Younes, no qual entende que a reprografia ainda não traz uma solução adequada, “pois, embora compreenda o problema enfrentado pelos estudantes, entende que a proposta esbarra na fragilidade da implantação e da fiscalização dos agentes envolvidos na cadeia de reprodução e de distribuição pecuniária dos direitos autorais”. Ou seja: se depender das grandes editoras, a cópia de obras para uso educativo seguirá à margem da lei.

“O problema é que temos um sistema de livros didáticos que tem completo subsídio público e cujo lucro fica para as grandes editoras que vencem as licitações”, diz Pablo Ortellado, professor da USP e pesquisador do Gpopai (Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação), vinculado à Universidade de São Paulo. Ortellado argumenta que as editoras de livros técnico-científicos pouco ou nada investem na formação dos escritores que contratam para fazer as obras. “Até 86% dos professores contratados pelas editoras tiveram formação em universidades públicas e escrevem os livros como um subproduto de seu trabalho acadêmico. Portanto, o investimento veio de seu salário e pesquisa pública financiada pelo Estado. As editoras pagam um valor para ele escrever um conteúdo, vencem as licitações porque têm mais estrutura e ganham muito dinheiro com isso. E, por fim, têm imunidade tributária. E ainda querem manter a cópia de trechos proibida. Não há a mínima contrapartida pelo lucro que tiveram.”

Segundo a Casa de Cultura Digital, que organiza estudos sobre o mundo da tecnologia, as matrículas no Ensino Superior aumentaram cerca de 130% nos últimos dez anos. Ao mesmo tempo, o número de livros didáticos vendidos nas universidades seguiu estável. “Boa parte dos estudantes veio do ProUni, das classes mais baixas. Não têm como estudar sem cópia”, diz Pablo Ortellado.

A definição da quantidade de uma obra permitida para cópia é outra questão delicada. A atual lei cita a permissão para um “pequeno trecho”, mas não define quanto é isso. “Na lei do plágio musical, -consideram-se plágio dois ou três compassos de uma obra. Na dos direitos autorais, não se sabe. As editoras definem como plágio ‘parte substancial da obra. É vago’”, afirma Guillherme Carboni, advogado especializado em causas de direitos autorais.

Também há névoa sobre quem fica com a responsabilidade judicial em caso de cópia. Exemplo: o professor disponibiliza material didático na lojinha do xerox para os alunos. Quem é processado, o professor, o dono da lojinha, os alunos ou todos? A falta de definição obviamente gerou interpretações diversas e antagônicas. As editoras interpretam que só o professor deve operar a máquina de xerox, sem solicitar a terceiros. Na universidade, definiu-se que é possível delegar a copistas (ou seja, a uma loja do ramo) e que a permissão se dá a um capítulo ou 10% de uma obra.

A questão da cópia acaba, na prática, sendo desprezada pelos professores de escolas e universidades que, sob o risco de não conseguirem dar aula, que se utiliza com frequência das lojinhas de xerox. -Pressionados pela ABDR (Associação -Brasileira do -Direito Autoral), a partir de 2005 houve um aumento considerável de batidas -policiais em lojas de fotocópias dentro e perto de escolas e universidades. Estudo da Casa de Cultura Digital aponta que 65% das instituições de Ensino Superior do município de São Paulo já passaram por batidas desde então.

Diretamente relacionada à questão dos direitos autorais está a centralização das obras didáticas por poucas editoras – de acordo com o Gpopai-USP, 70% das licitações são dominadas por quatro grandes grupos: FTD, Abril Educação (Ática, Scipione), Santillana (editoras Moderna e Objetiva) e Saraiva. Bianca Santana, coordenadora do projeto de recursos educacionais abertos na Casa de Cultura Digital, enxerga um retrocesso nesta padronização. “Um mesmo livro didático acaba servindo em São Paulo e no Norte do País. Acontece que há cada vez mais necessidade de regionalização de conteúdos. Uma vez, em conversa com uma professora de História no Pará, ela reclamou que um livro didático distribuído pelo governo tinha duas páginas retratando a colônia japonesa de São Paulo e duas linhas falando do estado dela”, afirma.

Os tópicos decorrentes da Lei de Direitos -Autorais são muitos e agora cabe ao Congresso Nacional dialogar com o Ministério da Cultura para adotar uma linha convergente. A ministra Ana Hollanda tem preferido uma posição mais restritiva em comparação aos antecessores Gilberto Gil e Juca Ferreira. Os próximos meses serão decisivos para saber se o professor deixará, enfim, de ser um fora da lei em sala de aula.

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